domingo, agosto 23

Gary e Nicole.

Desculpem se não tenho o costume de postagens longas, mas dessa vez foi preciso.
Ando lendo um livro de Norman Mailer, e em certa parte há essa carta. Quero dizer, o modo como o livro é escrito, o enredo, os personagens, tudo é perfeito. É uma história real contada com tanta veracidade, que se percebe todos os sentimentos das personagens no desenrolar da trama.

Então voltando à carta: escrita por um assassino a sangue frio à mulher que ele mais ama.

3 de Agosto

"Nada na minha existência me preparou para essa espécie de amor honesto e aberto que você me deu. Estou acostumado à mentira e à hostilidade, decepção e insolência, mal e ódio. Essas coisas são meu ambiente natural. Elas me formaram. Olho o mundo com olhos que suspeitam, duvidam, receiam, odeiam, enganam, zombam, são egoístas e vaidosos. Todas as coisas inaceitáveis, eu as vejo naturais. Olho em torno desta cela feia e abjeta, e sei que realmente pertenço a um lugar assim úmido e sujo, pois onde mais eu poderia estar? A água está em todo chão, desde aquele caso fodido que não dá descarga direito. O chuveiro é imundo e o fino colchão que me deram está quase preto de tão velho. Não tenho travesseito. Há baratas mortas nos cantos. Toda noite há mosquitos, e a luz é muito fraca. Estou sozinho aqui com meus pensamentos e posso sentir a velhice. Lembra-se de que lhe falei sobre A Velhice? E você me disse como ela era feia - a velhice, a velhice. Posso ouvir as rodas da carroça rangendo. Tão fodida de feia e tão perto de mim. Quando eu era criança... tinha um pesadelo sobre ser decapitado. Era mais do que um simples sonho. Mais como uma recordação. Me tirava da cama. Era como um eixo giratório da minha vida... Recentemente começou a fazer um pouco de sentido. Tenho uam dívida de muito tempo atrás. Nicole, isso deve deixar você deprimida. Nunca contei a ninguém, exceto a minha mãe, naquela noite em que tive aquele pesadelo e ela veio me confortar, mas nunca falamos nisso depois. E uma noite eu comecei a falar com você sobre isso e contei um bocado antes de entender que você não queria ouvir. Houve anos em que nem pensei nisso e, de repente, qualquer coisa (a figura de uma guilhotinha, um cepo de verdugo, um grande machado, ou mesmo uma corda) trazem tudo de volta e por alguns dias parece que estou perto de saber de algo muito pessoal, algo sobre mim mesmo. Alguma coisa que, de alguma forma, não foi completada e me faz diferente dos outros. Acho que é alguma dívida que eu tenho. Queria saber.
Uma vez você perguntou se eu era o demônio, se lembra? Não sou. O diabo havia de ser muito mais esperto do que eu, operaria uma escala muito maior e naturalmente não sentiria remorso. Assim, não sou Belzebu. E sei que o diabo não pode sentir amor. Mas posso estar mais longe Deus do que estou do diabo. O que não uma boa coisa. Parece que não é uma coisa boa. Eu quero ficar inteiro, ser feito inteiro, completo, minhas dívidas pagas (não importa quanto custem!) e não ter nada para censurar, nenhuma razão para sentir culpa ou medo. Espero que não seja uma coisa antiquada, mas gostaria de estar na visão de Deus. Saber que sou justo e limpo e correto. Quando se está assim, a gente sabe que está. E quando não se está, também se sabe. Tudo dentro de nós, de cada um de nós - mas acho que fugi disso quando tentava me aproximar, lidei com isso da maneira errada, fiquei desencorajado, chateado, preguiçoso e, finalmente, inaceitável. Mas o que é que eu faço agora? Não sei. Me enforcar?
Pensei nisso por anos, posso fazer isso. Esperar que o Estado me execute? É mais fácil e aceitável do que o suicídio. Mas eles não executaram ninguém aqui desde 1963 (e desde o ano passado não houve execuções legais em parte alguma). O que faço, apodreço na prisão? Ficando velho e amarfo, ou ruminando isso na minha mente, que sou aquele a quem estão fodendo todo, que sou apenas uma vítima inocente da porcaria da sociedade? O que é que eu falo? Gasto uma vida na prisão, procurando pelo Deus que desejei conhecer por tanto tempo? Retomo minha pintura? Escrevo poesia? Jogo handebol? Rôo meu coração nesse maravilhoso amor que você me deu e que eu joquei fora na segunda-feira de noite porque era tão mimado e não podia ter imediatamente uma camionete branca que desejava? O que eu falo? Sempre temos uma escolha, não temos?
Não estou pedindo que você responda essas questões para mim, Anjo, por favor não pense que estou. Tenho que fazer minha própria escolha. Mas qualquer coisa que você queira comentar ou dugerir ou dizer é sempre bem-vinda.
Meu Deus, Nicole, eu te amo."

Gary Gilmore a Nicole Barrett, 1976, "A Canção do Carrasco".

E ela era linda mesmo, heh:


Nicole Barret



Gary Gilmore

Fotos de www.gilmoregun.com